segunda-feira, 24 de novembro de 2008
MAATA MOULANA - CIDADE DO ISLAM
Em primeiro lugar, a surpresa. Aqui, no meio das dunas de areia, se ergue uma verdadeira cidade saariana que parece ter surgido do nada. São centenas de modestas habitações de tijolo ocre, separadas por ruas que não são exatamente ruas, por onde circulam presenças fugitivas. Dominando o conjunto, destacam-se os dois minaretes afilados de uma mesquita, que apontam para o céu. Até então, é impossível encontrar qualquer alma viva ao longo das dezenas de quilômetros de pista, exceto alguns dromedários, e, de repente, como num desenho animado, surge esta cidade que não é uma miragem, com um palmeiral, odores, seres humanos.
Sejam bem-vindos a Maata Moulana, literalmente 'a doação de Deus', a cidade onde ensinam 'o verdadeiro Islã', diz um habitante. 'O Islã, puro e simplesmente', corrige o chefe da comunidade, um homem de cerca de cinqüenta anos, vestido de branco da cabeça aos pés, que fala muito pouco. O seu nome é Abdallah el hadj Ould Mishry, mas todo mundo o chama de 'El Hadj'.
Situada a pouco menos de quatro horas de viagem de Nouakchott, a capital da Mauritânia, Maata Moulana é uma espécie de utopia tornada realidade; uma cidade ideal que vive no ritmo da religião muçulmana, mais precisamente de uma vertente do sufismo tidiane, que apareceu no século 19 no Maghreb (países da África do Norte) antes de se disseminar pela África subsaariana.
A vida nesta cidade está rigorosamente enquadrada. Não existe álcool em Maata Moulana, nem tabaco (tolerado apenas para os estrangeiros). Além disso, não há nenhum televisor nas habitações. Os líderes de bairro são encarregados de impor o respeito às leis da cidade e de solucionar os eventuais conflitos de vizinhança.
A organização social se desenvolve em função de grupos de idade. Os meninos de menos de 10 anos são 'brotos'; depois disso, eles serão integrados à 'geração da esperança', e, mais tarde, àquela da 'fé'; por fim, a partir de 40 anos, eles serão admitidos naquela dos 'sábios'. Cada geração tem uma função na cidade. Por exemplo, a limpeza dos locais públicos - excepcional - ou ainda a retirada da areia das casas, são tarefas reservadas aos mais jovens.
Uma organização idêntica é aplicada às mulheres. O destino reservado a estas últimas é provavelmente mais invejável do que no restante da Mauritânia. Nesta cidade, a poligamia é admitida ('El Hadj' tem três mulheres de tribos diferentes), mas sob algumas condições: é preciso ser um 'sábio' e dispor de uma renda confortável. Maata Moulana reivindica ser a cidade da Mauritânia onde a taxa de escolarização das mulheres é a mais elevada.
Em Maata Moulana, o Estado marca presença apenas em alguns setores. Há escolas primárias, um colégio e um centro de formação para as universidades, mas não há polícia alguma. O pagamento dos impostos locais é efetuado por um delegado da cidade em nome da coletividade. A definição de quem paga e o recolhimento das taxas constituem um assunto interno que não diz respeito à administração. Dois tipos de moeda continuam coexistindo: os dentes de peixe finamente trabalhados pelas mulheres, que as utilizam também como enfeites, e as moedas e as cédulas bancárias do Estado.
A vida política nacional não tem repercussão em Maata Moulana. Em caso de eleições, 'El Hadj' organiza as coisas de tal forma que todos os candidatos obtenham um mesmo número de votos. Foi o que aconteceu nas mais recentes legislativas e, em 2007, na eleição presidencial - embora um dos dois candidatos pertencesse à confraria tidiane. 'O que mais importava era conservar a amizade de todos os candidatos', explica o cineasta Abderrahmane Salem, que foi criado em Maata Moulana.
Enquanto os habitantes esperam que o jardim de plantas medicinais, que está em fase de instalação nos arredores da mesquita, comece a proporcionar dividendos para a comunidade (a sua meta será de abastecer as farmácias de todo o país), a cidade vive essencialmente do ensino do Islã sufi. No que vem a ser um exemplo único na Mauritânia, as escolas de Maata Moulana são freqüentadas por cerca de 1.500 alunos, enquanto a sua população não ultrapassa 3.000 habitantes. À primeira vista, nenhum elemento deixa o visitante adivinhar esta realidade, mas, aqui existem cerca de quarenta escolas religiosas solidamente implantadas, das quais a maioria é dirigida por mulheres.
O Estado não subvenciona os estabelecimentos corânicos, mas neles o ensino não custa caro: 20 ouguiyas (a moeda nacional) por aluno e por semana, ou seja, menos de 1 euro (R$ 2,50). A este preço se soma uma espécie de taxa fixa, de um montante igualmente muito módico, que é cobrada quando o aluno já ultrapassaou algumas etapas na sua educação religiosa.
Os alunos são hospedados pelos habitantes. 'El Hadj', por exemplo, oferece uma moradia a cerca de uma centena deles no seu - vasto - conjunto de casas. Os inquilinos cujos pais não têm dificuldades financeiras pagam um aluguel pouco elevado. Os outros se hospedam sem pagar. Para os alunos mais idosos, existe na periferia da cidade uma estrutura que pode ser chamada de cidade universitária. Os alojamentos são minúsculos e de um despojamento mais que monacal. Eles mais se parecem como um abrigo do que com uma moradia.
Segundo os habitantes, o que torna a cidade de Maata Moulana realmente interessante é o fato de que nela, o ensino corânico e a educação 'moderna', a qual é da alçada do ministério da educação nacional, são administrados conjuntamente e se completam. Os alunos alternam os dois cursos, e correm de uma aula para outra no decorrer do dia.
Com isso, a organização dos horários das crianças, mesmo para as mais novas, oferece pouquíssimo tempo vago. 'Durante cinco dias por semana, a minha filha de 8 anos vai à escola corânica das 5h30 da manhã até às 8h. Das 8h30 às 12h, ela assiste às aulas da escola primária. Depois, ela retorna à escola corânica, onde ela permanece das 15h às 17h. Se nós morássemos na capital, ela não poderia freqüentar a escola corânica mais de uma hora por dia', explica o pai de uma menina que esbanja dinamismo.
Ao longo de muitos anos, os alunos vivem neste ritmo. 'Eles chegam a permanecer cinco, seis ou sete anos em nossas escolas', diz 'El Hadj'. No final das contas, os melhores 'estudantes' deixarão Maata Moulana, capazes de recitarem de cor e salteado - e com uma entonação precisa - o Alcorão inteirinho (ou seja, 77.439 palavras). O ciclo de escolaridade religiosa destinada às meninas é menos puxado. Ele se conclui tão logo elas aprenderam o equivalente à duodécima parte do Alcorão.
Até o final dos anos 1950, Maata Moulana não existia. O vilarejo foi fundado por um homem conhecido pela sua piedade e o seu saber religioso, o pai do atual chefe da cidade. 'Eu apenas dei prosseguimento a um caminho que já estava traçado', diz 'El Hadj'. Na realidade, este homem muito piedoso, diplomado da universidade de Dacar, no Senegal, e que ficará conhecido como um grande viajante para sempre, não se limitou a salvaguardar a herança recebida e o poder que lhe é inerente. Ele a fez frutificar e abriu Maata Moulana para o exterior, a tal ponto que ele conseguiu atrair para a sua cidade assoreada muitos estrangeiros - africanos, mas também ocidentais - seduzidos pelo ensino que nela é administrado.
Como resultado deste processo, uma pequena comunidade estrangeira - integrada por muçulmanos (inclusive por mulheres) que reivindicam pertencer a esta vertente do sufismo tidiane - fincou suas raízes em Maata Moulana. Uma das provas desta evolução pode ser encontrada no túmulo anônimo de um cidadão belga, convertido ao Islã, que morreu em Maata Moulana. A colônia dos 'estrangeiros' reúne negros africanos do Niger, de Senegal, do Mali, além de alguns espanhóis da Andaluzia, em alguns casos muito jovens, convencidos de terem recuperado aqui as suas raízes, de um negro americano, dotado de um físico de colosso, Ali o californiano, e de quatro famílias de franceses.
Entre eles, destaca-se Yann 'Mansour' de Grange. De origem bretão, ele vivenciou de muito perto os eventos de Maio de 68, que transformaram este antigo aluno de colégios de jesuítas num anarquista libertário adepto de todas as drogas mais pesadas que estavam em voga na época. Foi então que ele desembarcou em Maata Moulana, há cerca de quinze anos, no final de um percurso de vida caótico. 'Eu fui professor de escola primária na Auvergne, cantor de ruas e bares no sul da França, e também carpinteiro nos Pireneus', conta de Grange. 'Eu comecei a me interessar pelo sânscrito, pelo chinês e a língua árabe. Estudei o budismo zen antes de abandonar tudo o que eu estava fazendo para iniciar uma viagem rumo à África. Eu sentia falta de um cimento espiritual'.
O nosso viajante que ainda não adquiriu o nome Mansour encontrará esse 'cimento espiritual' na Mauritânia, onde ele cruza com 'El Hadj'. Depois de muitas horas de discussões com o seu 'mestre espiritual', e de mais alguns sonhos 'intensos' que o deixam assombrado, e lá está Yann 'Mansour', instalado em Maata Moulana no começo dos anos 1990. Foi nesta cidade que ele reconstruiu a sua vida, e foi em Aichatou, não longe dali, que ele acabou se casando, com uma moura 25 anos mais nova, com quem ele teve dois filhos. A casa que o casal aluga 'debaixo da chapa de ferro' é sumária e o seu nível de vida modesto. 'As fontes do dinheiro que eu ganho (menos de 200 euros - R$ 500 - por mês) se limitam aos artigos publicados na imprensa local e a algumas consultas que dou (medicina, reforço escolar...)', diz.
A precariedade é a condição comum de todos os imigrantes europeus que vivem em Maata Moulana. Não faltam aqueles dentre eles - muitos dos quais são portadores de diplomas prestigiosos - que efetuam idas e voltas entre a Europa e a Mauritânia. 'Eles retornam para lá para ganharem um pouco de dinheiro e voltam tão logo eles conseguem. Eles fazem, no sentido inverso, o que fazem todos os norte-africanos que emigram para a França ou outros países', resume Mansour.
Este bretão não tem certeza de que permanecerá pelo restante da vida em Maata Moulana. Ele não fala fluentemente nem o árabe, nem o hassanya, a língua mais comumente empregada na Mauritânia. Além disso, apesar de ser muçulmano, ele não pertence à confraria tidiane. 'Até hoje, eu continuo sendo um pouco rebelde, no fundo da minha alma', explica.
'Nunca ninguém vai embora para valer de Maata Moulana. Aqui, existe um espírito de família que resiste ao tempo e ao afastamento geográfico', pondera o cineasta Abderrahmane Salem. 'Um dia, em Nouakchott', conta, 'eu estava esbarrando na má-vontade de um empregado de banco. Um dos seus colegas, quando ouviu que eu era originário de Maata Moulana, levantou-se e, sem proferir uma palavra, me entregou o documento que eu estava solicitando'. Aliás, o cineasta, que se tornou célebre por conta da 'caravana das imagens' que ele organiza até mesmo nas aldeias onde ninguém nunca assistiu a um filme sequer, incluiu na sua programação alguns curtas-metragens sobre Maata Moulana, onde ele passou uma parte da sua juventude.
terça-feira, 25 de setembro de 2007
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